domingo, 12 de julho de 2009

Diario de um Mago trecho de Paulo Coelho

Dois dias depois tivemos que subir um monte chamado de Alto do Perdão. A subida demorou várias horas e, quando chegamos lá em cima, vi uma cena que me chocou; um grupo de turistas, com o rádio dos carros a todo volume, tomavam banho de sol e bebiam cervejas. Tinham aproveitado uma estrada vicinal que levava até o alto do monte.

– É assim mesmo – disse Petrus. – Ou você acha que ia encontrar aqui em cima um dos guerreiros de El Cid vigiando o próximo ataque dos mouros?

Enquanto descíamos, realizei pela última vez o Exercício da Velocidade. Estávamos diante de mais uma planície imensa, ladeada por montes azulados e com uma vegetação rasteira queimada pela seca. Não havia quase árvores, apenas um terreno pedregoso com alguns espinheiros. No final do exercício, Petrus me perguntou alguma coisa sobre meu trabalho, e só então eu me dei conta que há muito tempo não pensava nisto. Minhas preocupações com os negócios, com o que tinha deixado por fazer, tinha praticamente deixado de existir. Só me lembrava destas coisas à noite, e mesmo assim não dava muita importância. Estava contente de estar ali, fazendo o caminho de Santiago.

– Qualquer hora você vai fazer que nem Felícia de Aquitânia – brincou Petrus depois que comentei com ele o que estava sentindo. Depois, parou e pediu que eu deixasse a mochila no chão.

– Olhe em volta e fixe sua visão em um ponto qualquer – disse.

Eu escolhi a cruz de uma igreja que conseguia ver ao longe.

– Mantenha seus olhos fixos neste ponto, e procure concentrar-se apenas no que eu vou lhe falar. Mesmo que você sinta qualquer coisa diferente, não se distraia. Faça como estou dizendo.

Fique em pé, relaxado, com os olhos fixos na torre, enquanto Petrus colocou-se por detrás de mim e comprimiu um dedo na base da minha nuca.

– O caminho que você está fazendo é o caminho do Poder, e só os exercícios de Poder lhe serão ensinados. A viagem, que antes era uma tortura porque você queria apenas chegar, agora começa a transformar-se em prazer, no prazer da busca e da aventura. Com isto você está alimentando uma coisa muito importante, que são seus sonhos.

“O homem nunca pode parar de sonhar. O sonho é o alimento da alma, como a comida é o alimento do corpo. Muitas vezes, em nossa existência, vemos nossos sonhos desfeitos e nossos desejos frustrados, mas é preciso continuar sonhando, senão nossa alma morre e Ágape não penetra nela. Muito sangue já rolou no campo diante dos seus olhos, e aí foram travadas algumas das batalhas mais cruéis da Reconquista. Quem estava com a razão, ou com a verdade, não tem importância: o importante é saber que ambos os lados estavam combatendo o Bom Combate.

“O Bom Combate é aquele que é travado porque o nosso coração pede. Nas épocas heróicas, no tempo dos cavaleiros andantes, isto era fácil, havia muita terra para conquistar e muita coisa para fazer. Hoje em dia, porém, o mundo mudou muito, e o Bom Combate foi transportado dos campos de batalha para dentro de nós mesmos.

“O Bom Combate é aquele que é travado em nome de nossos sonhos. Quando eles explodem em nós com todo o seu vigor – na juventude – nós temos muita coragem, mas ainda não aprendemos a lutar. Depois de muito esforço, terminamos aprendendo a lutar, e então já não temos a mesma coragem para combater. Por causa disto, nos voltamos contra nós e combatemos a nós mesmos, e passamos a ser nosso pior inimigo. Dizemos que nossos sonhos eram infantis, difíceis de realizar, ou fruto de nosso desconhecimento das realidades da vida. Matamos nossos sonhos porque temos medo de combater o Bom Combate.

A pressão do dedo de Petrus na minha nuca tornou-se mais intensa. Eu julguei que a torre da igreja se transformava – o contorno da cruz estava parecendo um homem de asas. Um anjo. Pisquei os olhos e a cruz voltou a ser o que era.

– O primeiro sintoma de que estamos matando nossos sonhos é a falta de tempo – continuou Petrus. – As pessoas mais ocupadas que conheci na minha vida sempre tinham tempo para tudo. As que nada faziam estavam sempre cansadas, não davam conta do pouco trabalho que precisavam realizar, e se queixavam constantemente que o dia era curto demais. Na verdade, elas tinham medo de combater o Bom Combate.

“O segundo sintoma da morte de nossos sonhos são nossas certezas. Porque não queremos olhar a vida como uma grande aventura a ser vivida, passamos a nos julgar sábios, justos e corretos no pouco que pedimos da existência. Olhamos para além das muralhas do nosso dia-dia e ouvimos o ruído de lanças que se quebram, o cheiro de suor e de pólvora, as grandes quedas e os olhares sedentos de conquista dos guerreiros. Mas nunca percebemos a alegria, a imensa Alegria que está no coração de quem está lutando, porque para estes não importa nem a vitória nem a derrota, importa apenas combater o Bom Combate.

Finalmente, o terceiro sintoma da morte de nossos sonhos é a Paz. A vida passa a ser uma tarde de Domingo, sem nos pedir grandes coisas, e sem exigir mais do que queremos dar. Achamos então que estamos maduros, deixamos de lado as fantasias da infância, e conseguimos nossa realização pessoal e profissional. Ficamos surpresos quando alguém de nossa idade diz que quer ainda isto ou aquilo da vida. Mas na verdade, no íntimo de nosso coração, sabemos que o que aconteceu foi que renunciamos à luta por nossos sonhos, a combater o Bom Combate.

A torre da igreja transformava-se a toda hora, e em seu lugar parecia surgir um anjo, com asas abertas. Por mais que eu piscasse, a figura permanecia lá. Tive vontade de falar com Petrus, mas senti que ele ainda não havia acabado.

– Quando renunciamos aos nossos sonhos e encontramos a paz – disse ele depois de um tempo – temos um pequeno período de tranqüilidade. Mas os sonhos mortos começam a apodrecer dentro de nós, e infestar todo o ambiente em que vivemos. Começamos a nos tornar cruéis com aqueles que nos cercam, e finalmente passamos a dirigir esta crueldade contra nós mesmos. Surgem as doenças e as psicoses. O que queríamos evitar no combate – a decepção e a derrota – passa a ser o único legado de nossa covardia. E um belo dia, os sonhos mortos e apodrecidos tornam o ar difícil de respirar e passamos a desejar a morte, a morte que nos livrasse de nossas certezas, de nossas ocupações, e daquela terrível paz das tardes de domingo.

Agora eu tinha certeza de que estava vendo mesmo um anjo, e não consegui mais seguir as palavras de Petrus. Ele deve ter percebido isto, pois tirou o dedo da minha nuca e parou de falar. A imagem do anjo permaneceu por alguns instantes, e depois desapareceu. Em seu lugar, surgiu novamente a torre da igreja.

Ficamos alguns minutos em silêncio. Petrus enrolou um ci-garro e começou a fumar. Eu tirei da mochila uma garrafa de vinho e bebi um gole. Estava quente, mas o sabor continuava o mesmo.

– O que você viu? – perguntou ele.

Eu contei a história do anjo. Disse que no começo, quando piscava, a imagem desaparecia.

– Também você tem que aprender a combater o Bom Combate. Já aprendeu a aceitar as aventuras e os desafios da vida, mas continua querendo negar o extraordinário.

Petrus tirou da mochila um pequeno objeto e me entregou. Era um alfinete de ouro.

– Isto é um presente de meu avô. Na Ordem de RAM, todos os Antigos possuíam um objeto como este. Chama-se “O Ponto da Crueldade”. Quando você viu o anjo aparecer na torre da igreja, quis negá-lo. Porque não era uma coisa com a qual você estivesse acostumado. Na sua visão de mundo, as igrejas são igrejas e as visões só podem acontecer nos extases provocados pelos Rituais da Tradição.

Eu respondi que minha visão deve ter sido efeito da pressão que ele exercia na minha nuca.

– Está certo, mas não muda nada. O fato é que você rejeitou a visão. Felícia de Aquitânia deve ter visto algo semelhante, e apostou toda a sua vida no que viu: o resultado é que transformou sua obra em Amor. O mesmo deve ter acontecido com seu irmão. E o mesmo acontece com todo mundo, todos os dias: vemos sempre o melhor caminho a seguir, mas só andamos pelo caminho que estamos acostumados.

Petrus recomeçou a caminhar, e eu o segui. Os raios de sol faziam brilhar o alfinete na minha mão.

– A única maneira de salvarmos nossos sonhos, é sendo generosos conosco mesmos. Qualquer tentativa de autopunição – por mais sutil que seja, deve ser tratada com rigor. Para saber quando estamos sendo cruéis conosco mesmos, temos que transformar em dor física qualquer tentativa de dor espiritual: como culpa, remorso, indecisão, covardia. Transformando uma dor espiritual em dor física, saberemos o mal que ela pode nos causar.

E Petrus me ensinou O EXERCÍCIO DA CRUELDADE.

O EXERCÍCIO DA CRUELDADE

Toda vez que um pensamento que você acha que lhe faz mal passar-lhe pela cabeça – ciúme, autopiedade, sofrimentos de amor, inveja, ódio, etc – proceder da seguinte maneira:

Cravar a unha do indicador na raiz da unha do polegar, até que a dor seja bem intensa. Concentre-se na dor: ela está refletindo no campo físico o mesmo sofrimento que você está tendo no campo espiritual. Só afrouxe a pressão quando o pensamento lhe sair da cabeça.

Repita quantas vezes for necessário, mesmo que seja uma atrás da outra, até que o pensamento o abandone. Cada vez, o pensamento voltará mais espaçadamente, e sumirá por completo, desde que você não deixe de cravar a unha toda vez que ele voltar.

– Antigamente eles usavam um alfinete de ouro para isto – disse ele. – Hoje em dia as coisas mudaram, como mudam as paisagens no caminho de Santiago.

Petrus tinha razão. Visto de baixo, a planície parecia uma série de morros à minha frente.

– Pense em algo cruel que você fez hoje consigo mesmo, e execute o exercício.

Eu não conseguia me lembrar de nada.

– Sempre é assim. Só conseguimos ser generosos conosco nas poucas horas que precisamos de severidade.

De repente eu me lembrei que havia me julgado um idiota por subir o Alto do Perdão com tanta dificuldade, enquanto aqueles turistas tinham conseguido o caminho mais fácil. Sabia que não era verdade, que eu estava sendo cruel comigo mesmo; os turistas estavam em busca de sol, e eu estava em busca de minha espada. Eu não era um idiota e bem podia me sentir como tal. Cravei com força a unha do indicador na raiz da unha do polegar. Senti uma dor intensa, e enquanto me concentrava na dor, a sensação de que era um idiota passou.

Comentei com Petrus e ele riu sem dizer nada.

Aquela noite ficamos num aconchegante hotel da tal cidadezinha cuja igreja eu havia visto de longe. Depois do jantar, resolvemos dar um passeio pelas ruas, para fazer a digestão.

– De todas as maneiras que o homem encontrou para fazer mal a si mesmo, a pior delas foi o Amor. Estamos sempre sofrendo por alguém que não nos ama, por alguém que nos deixou, por alguém que não quer nos deixar. Se estamos solteiros é porque ninguém nos quer, se estamos casados transformamos o casamento em escravidão. Que coisa terrível – completou mal-humorado.

Chegamos em frente a uma pequena praça, aonde estava a igreja que eu havia visto. Era pequena, sem grandes sofisticações arquitetônicas, e seu campanário elevava-se para o céu. Tentei ver de novo o anjo e não consegui nada.

Petrus ficou olhando a cruz lá em cima. Pensei que estivesse vendo o anjo, mas não: logo começou a falar comigo.

– Quando o Filho do Pai desceu à terra, ele trouxe o Amor. Mas como a humanidade só consegue entender o amor com sofrimento e sacrifício, terminaram por crucificá-lo. Se não fosse assim, ninguém acreditaria em seu amor, já que todos estavam acostumados a sofrer diariamente com suas próprias paixões.

Sentamos no meio-fio e continuamos a olhar a igreja. Mais uma vez foi Petrus quem quebrou o silêncio.

– Sabe o que quer dizer Barrabás, Paulo? Bar quer dizer filho, e Abba quer dizer pai.

Ele olhava fixamente para a cruz no campanário. Seus olhos brilhavam, e senti que estava possuído por alguma coisa, talvez por este amor do qual falava tanto, mas que eu não conseguia entender direito.

– Como são sábios os desígnios da glória divina! – disse, fazendo com que sua voz ecoasse pela praça vazia. – Quando Pilatos pediu que o povo escolhesse, na verdade não lhe deu opção. Mostrou um homem flagelado, em pedaços, e outro homem de cabeça erguida, Barrabás, o revolucionário. Deus sabia que o povo ia enviar o mais fraco para a morte, para que ele pudesse provar seu amor.

E concluiu:

– E, no entanto, fosse qual fosse a escolha, o Filho do Pai é que terminaria sendo crucificado.

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